terça-feira, 22 de março de 2011

A Copa de 2014 e o Direito à Moradia em Porto Alegre

*Jacques Távora Alfonsin 

As muitas vantagens que o desenho urbanístico de Porto Alegre pode ganhar com a realização da Copa do Mundo de futebol de 2014, tem sido apregoadas pela mídia como indiscutíveis. É como se o evento tivesse caído do céu e as oportunidades de mudança para melhor não pudessem ser desperdiçadas.

A se acreditar no que tem sido publicado, tudo gira em torno de uma palavra de sentido tão ambíguo na sua formulação quanto ambivalente nos seus efeitos: recuperação. “Recuperação do cais do porto”, “recuperação da orla do Guaíba”, “recuperação do morro Santa Tereza”, para se lembrar apenas os projetos mais salientados que estão querendo sair das pranchetas dos planejadores urbanos.



Essa publicidade extremamente bem preparada e arrazoada, os novos edifícios, as praças, os jardins, as vias públicas, os espaços de lazer, brilham de sedução e conveniência, enchem de esperança qualquer um/a que sonhe substituir o velho pelo novo e o feio pelo bonito. A liberdade de iniciativa econômica - especialmente a que impulsiona as imobiliárias e empresas construtoras - que historicamente não deixa de se impor à liberdade política, está vivendo uma expectativa promissora de muitos negócios e lucro abundante.

Até agora, ao que se saiba, lá onde vivem hoje milhares de famílias de trabalhadoras/es pobres, exercendo o seu direito à moradia, diretamente afetadas por essa poderosa iniciativa de intervenção no solo urbano, não mereceram uma lembrancinha que pudesse abafar esse ruído intenso de hábil aliciamento da opinião alheia.

Entre recuperar um lugar da cidade para enxotar quem lá vive e mora, e recuperá-lo para satisfazer necessidades vitais desse mesmo povo, do tipo casa, luz, água, esgoto, vias de acesso, escola, posto de saúde, entorno urbanístico seguro e limpo, a primeira alternativa nem tomou conhecimento, até agora, da segunda.
A interpretação e a aplicação das leis, em nosso país, sofre desse vício perverso de desconhecer a extensão dos seus efeitos, quando a previsão desses é feita em desfavor do apetite do mercado de terras e em favor dos direitos humanos fundamentais de quem nelas consegue achar um espaço para, mal e mal, sobreviver. As/os sem-teto, as/os sem-terra, as/os doentes pobres, as/os índias/os e as/os desempregadas/os, particularmente, sofrem as conseqüências dessa injustiça social indiferente ou até hostil aos seus direitos.


E não é por falta de previsão legal que essa injustiça acontece. A Constituição Federal, por exemplo, introduziu no art. 6º, pela Emenda 26, o direito à moradia como um direito social e pela Emenda 64, agora de 2010, também o direito à alimentação como um direito social. Desde o regime militar, por incrível que pareça, o Estatuto da Terra (Lei 4504/64) já previa assegurar “a todos o acesso à propriedade da terra” e, em seu art. 12 que o uso desta “é condicionado ao bem estar coletivo”. O Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) determina, já no parágrafo único do seu primeiro artigo, que as suas disposições regulam o “uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”; no inciso XIII do seu art. 2º dispõe que deve haver audiência “da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população”.

A Medida Provisória 2220/01, por sua vez, reconhece, em seu primeiro artigo, que quem tenha posse antiga (cinco anos) anteriormente a 30 de junho de 2001, “até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, tem o direito a concessão de uso especial para fins de moradia” .... A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, em seu art. 177, parágrafo 5º, determina que os municípios assegurem a “participação das entidades comunitárias” (...) em “planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes.” A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, da mesma forma, nos vários incisos que detalham a disposição do seu art. 201 (capítulo da política e da reforma urbana) democratiza acentuadamente a atividade administrativa urbanística. No inciso V assegura “a participação popular no processo de planejamento.”


Tentando analisar as razões pelas quais todo esse acervo de leis pouco ou em nada ampara o direito à moradia do povo trabalhador e pobre da nossa cidade, reuniram-se, na quinta-feira passada, dia 11, em dependência da Vila Barracão, várias lideranças de moradoras/es que vivem naqueles bairros mais diretamente ameaçados pelos megaprojetos que estão sendo estudados e decididos para a Copa de 2014, sem a participação de ninguém que represente toda essa gente.

Ali se pôde constatar mais uma iniciativa de mobilização popular que tem tudo para dar certo. Essa multidão de pessoas que, justamente por sua condição econômica, procurou abrigo em Porto Alegre, sem outra alternativa que não a da favela, da subhabitação, da “vila” e da maloca, não vai ceder barato, felizmente, os seus direitos à terra e à moradia, que acima estão sumariados e que nem se esgotam naquela lista.

Antes pelo contrário. Essa é a oportunidade de fazer valer o que a lei, costumeiramente usada, abusada e violada contra a população que vive nesses lugares, prevê em seu favor. “Erradicação da pobreza”, “função social da propriedade”, terra utilizada “em prol do bem coletivo”, por exemplo, são expressões que figuram no nosso ordenamento jurídico, inclusive em Planos Diretores de municípios, como “garantias”, senão da eliminação, pelo menos da diminuição das desigualdades sociais vergonhosas que marcam a nossa realidade.

Agora se pretende retirar tudo isso do papel, empoderando aquela mobilização. A palavra de ordem que mais se ouviu nessa reunião foi a da urgência de se implementar a regularização fundiária das posses de quem vive nesses bairros e a de resistir contra qualquer iniciativa pública ou privada que se oponha a esse direito. Não ficou excluída nem a possibilidade da desobediência civil, sempre que o poder econômico privado sobre as terras do Município ou o Poder Público que a ele se mostre dócil, manipulem essa mesma lei, sob o pretexto sempre hipócrita de respeitá-la.


Em nome da sua dignidade própria e da cidadania, esse povo já mostrou o que pode contra o desconhecimento e o desprezo a que tem sido relegado. Ofereceu uma resposta tão contundente ao governo do Estado quando esse tentou vender ou permutar parte do morro Santa Tereza, a pretexto de descentralizar a Fase, que esse se viu constrangido a desistir do projeto de lei que viabilizaria os efeitos anti-sociais que comportava.


Que os jogos de futebol da Copa do Mundo de 2014, projetados para Porto Alegre, se realizem e que o nosso país cumpra nessa oportunidade o seu papel ninguém é contra. Que isso custe a violação do direito de moradia de milhares de pessoas que aqui vivem, aí já ficou dado o recado. Há muita e boa gente contra.

* Advogado do MST e Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

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